domingo, 28 de março de 2010

CHAMA-LHE VIDA

insistir no erro ou chamar-lhe vida
escorregar para o cimo do nada
permanecer
verter a dúvida e soprar a dor


silêncios da alma feita gestos e choro inaudível
mas sentes que o que vês é pouco e o que não vês não é


dispersão, compressão, desesperança, terramotos longínquos impacientes
soterrados em mel
não sabe nem bem nem mal, só a estar preso.


Ana Ventura



 

quarta-feira, 24 de março de 2010

AS PALAVRAS ABREM PORTAS


As palavras aproximam:
prendem-soltam
são montanhas de espuma
que se faz-desfaz
na areia da fala

Soltam freios
abrem clareiras no medo
fazem pausa na aflição

Ou então não:

                  matam

      afogam

                 separam definitivamente



Amando muito muito
ficamos sem palavras


Ana Hatherly

sábado, 20 de março de 2010

E

     VIVA


           A


                 POESIA

 





                 
   

quinta-feira, 18 de março de 2010

O VERBO NO INFINITO

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...


Vinicius de Moraes


domingo, 14 de março de 2010

A DOIS II

Segue-me pela palavra,
Vem, segue-me.
Mas, não venhas pela mão
Que o peso se assemelha a fardo
E o que se perde é união.

Vem, segue-me.
Mas, caminha pelo teu pé,
Que teu caminhar é único
E não se entende com a minha fé.

Segue-me, vem segue-me.
Que ando atenta ao caminho
Cuido para que possas vir comigo.
Anda, por aqui há tempo,
Há espaço. Não falta nem sobeja,
É ganho em cada passo.

Vem, segue-me,
Segue-me que alcanço o meu,
Pela palavra eu lá chego,
E a nada me sabe
Se não for seguido por sonho teu.


Margarida Damião Ferreira


segunda-feira, 8 de março de 2010

CONTIGO

Com muito,
Com mesmo muito,
Com tanto que nem imaginas.
Com todo o que tenho,
Com mais do que o teu,
Com todo o que te posso dar,
Com muito mais do que alguém já te deu.
Com um tão grande, tão grande...
Com o que nunca dei a ninguém,
Com o que nunca ninguém quis dar a alguém,
Com um, que só eu sei.
Só eu sei com quanto,
Com qual,
Com que amor eu te escrevo isto.







Margarida Damião Ferreira









quarta-feira, 3 de março de 2010

Ó MEU AMOR, NÃO TE ATRASES

ó meu amor, não te atrases
vou agora pôr-te à prova
esta noite é lua nova
e tu não sabes de fases


se chegas tarde te acuso
de que andarás a enganar-me:
vindo de ti, cada abuso
me soa a sinal de alarme

teus olhos arregalados
não são desculpa melhor
sabes cá chegar de cor
e mesmo de olhos fechados

nem um cego se perdia
lá fora agitam-se os ramos
nas brenhas da ventania
é tarde, porém jurámos

que enquanto este amor se guarde
e seja o nosso segredo
virias cedo, bem cedo,
e havias de partir tarde

sendo a lua nova ou cheia
ou crescente ou minguante
o que a nós nos incendeia
é fogo de outro quadrante

é clarão de uma outra luz
que ao pressentir os teus passos
acendi quando dispus
quatro quartos nos meus braços



Vasco Graça Moura


 



segunda-feira, 1 de março de 2010

AS RAÍZES DO VOO

São as cores?
Ou declarar-me assim a esta árvore?
Num sobressalto, desassossego
lento-as colmeias de ramos e de folhas,
o corpo em curvas densas,
as raízes,
e, delicadamente, o coração

Apaixonar-me e outra vez,
agora por um tempo de nervura
acesa, o fogo-e sem palavra que chegasse
para habitar o mundo:
são as cores, dir-lhe-ia,
ou os meus olhos?

E se faltar olhar, ouvido, cheiro, mãos,
ver-te sem ver, sentir-te sem sentir:
neste musgo e por dentro
poder perder-me, fingir-me distraída
pelo puro prazer de me fingir,
sem sossego nenhum
-aprender a voar-
pelo desassossego de um dedo
preso à terra

Mas se as asas faltarem,
serão sempre as cores,
uma leve impressão de nervos, digital,

Há-de ser isto assim:
luz para além de azul,
paz muito além do verde a respirar
-ou eu, igual ao sol,
comovendo-me em ar e
por raízes-


Ana Luísa Amaral