Estilhaços de vidro
Alguma coisa se partiu
Quebrou-se em milésimas
Partes infinitas e foscas
Tão pequenas
Jamais se dirá o que um dia foi
Permanece no chão
Coberto com uma longa teia
Brilham à medida que a luz trespassa
O que se terá desfeito?
Não há nada a limpar
Não é possível juntar todos os fragmentos
Estilhaços. . .
Sara Almeida Santos
Surge Janeiro frio
e pardacento,
Descem da serra os lobos
ao povoado;
Assentam-se os fantoches
em São Bento
E o Decreto da fome
é publicado.
Edita-se a novela do
Orçamento;
Cresce a miséria ao
povo amordaçado;
Mas os biltres do
novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.
E enquanto à fome o
povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
mistura de judeu e de vilão,
Também faz o pequeno " sacrifício "
De trinta contos - só!
- por seu ofício
Receber, a bem dele...
E da nação...
José Régio
Soneto escrito em 1969
" José Régio e o seu burro " - por Hermínio Felizardo
A imensidão da cor espalha-se
Mistura-se na saliva dos desejos
Perde-se no centro da terra
Renova-se a cada beijo
Desvanece-se num só gemido
O prazer do púrpuro
O cheiro dos frutos
Sim, são vermelhos,
Sim, são meus
Encantos e desencantos,
Enquanto sonhas e enquanto te perdes
Suspiros no vazio...
Silêncio que não existe
Evades-te e de novo te reencontras
Nunca em ti, sempre em mim
Eis-te aqui
A preencher os contornos do todo
Sara Almeida Santos
Lá anda a minha Dor às cambalhotas
No salão de vermelho atapetado-
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rotas.
O Erro sempre a rir-me em destrambelho-
Falso mistério, mas que não se abrange...
De antigo armário que agoirento range,
Minha alma actual o esverdinhado espelho...
Chora em mim um palhaço às piruetas;
O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido-
E, entretanto, foram de violetas,
Deram-me beijos sem os ter pedido...
Mas como sempre, ao fim - bandeiras pretas,
Tômbolas falsas,carrossel partido...
Mário de Sá-Carneiro