terça-feira, 30 de abril de 2013

Auto-Erotismo



Havia uma nascente
dentro de mim
que não secava.
Era um fio
e crescia, crescia
até ser rio.

Havia um rio
dentro de mim
que não parava,
a engrossar.
E corria, corria
atrás do mar.

Havia um mar
dentro de mim
que se alongava
como um lençol,
onda após onda,
de encontro ao sol.

Havia um sol
dentro de mim
que se acendia
como se fosse eu
a fazer o dia.


César Vieira Dinis



sábado, 20 de abril de 2013

Sede




Suponho ponho
encaminho o espaço
no céu da tua boca 
e teu palato

As palavras formadas
na saliva
quando bebo o vinho
em tua face

Faço o novelo
e desfaço a arte
teço com o grito da água
a tua sede

Seco com o linho do cabelo
e passo
ao lado mesmo do nó do teu abraço


Maria Teresa Horta





quarta-feira, 27 de março de 2013

Depois das palavras


O silêncio continua o caminho
quando não é possível a viagem.

Tem campos
que se prologam na distância.
No seu dorso encontro
o que nenhuma frase alcançaria.

Os poemas ficam sempre antes
do lugar desejado.
Não seguem até ao fim
do instante que permitem.

O mundo começa no seu limite,
depois de cada palavra.
E a poesia outra vez isolada
tornou-se no sinal da despedida.


Joel Henriques

(publicado na Rev. Relâmpago, nº21. Versão modificada)









sexta-feira, 22 de março de 2013

Estilhaços


Estilhaços de vidro
Alguma coisa se partiu
Quebrou-se em milésimas
Partes infinitas e foscas
Tão pequenas
Jamais se dirá o que um dia foi
Permanece no chão
Coberto com uma longa teia
Brilham à medida que a luz trespassa
O que se terá desfeito?
Não hã nada a limpar
Não é possível juntar todos os fragmentos
Estilhaços. . .



Sara Almeida Santos




quarta-feira, 6 de março de 2013

AS PALAVRAS APROXIMAM


As palavras aproximam
prendem-soltam
são montanhas de espuma
que se faz-desfaz
na areia da fala


Soltam freios
abrem clareiras no medo
fazem pausa na aflição


ou então não:
                  matam
         afogam
                  separam definitivamente



Amando muito muito
ficamos sem palavras



Ana Hatherly




domingo, 13 de janeiro de 2013



A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio acto de dar-se

O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita

O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende

E quando o poema é bom
não se aperta a mão:
aperta-se a garganta


Ana Hatherly



quinta-feira, 10 de janeiro de 2013


Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio,
água ( quase tudo )
e cloreto de sódio.


António Gedeão